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sexta-feira, 26 de julho de 2013

laivo



laivo s.m. mancha, nódoa, marca, registro, marcação duradoura.
Veio de madeira.
S.m.pl. Fig. marca forte.
vestígios, sinais.
O tio tinha deixado algumas fitas jogadas. Dava a entender que não fazia mais questão delas. Pegou uma sem capa em que chamou a atenção algo que lia como "u2". "U dois" devesse significar alguma coisa que ele não sabia o que era. Pegou a fita. À tarde levou para que experimentasse no som. Era "Ú two", foi corrigido. Carecia de muitas correções. Chamava um refrigerante que nunca tinha provado de "espríte". As coisas só chegavam em casa pelos jornais velhos que embrulhavam as compras vindas da venda do Zé do Eró e do rádio, quase sempre Itatiaia. A TV ficava pouco ligada por conta da economia de luz e porque já que era velha, não podia esquentar a válvula e tragicamente "queimar". Talvez por isso entendesse tão pouco de música e de estrangeirismos. Talvez por isso sua primeira dependência daquela existência.

Depois lhe explicou que era uma banda irlandesa. Tocou "Sunday Bloody Sunday" e "Desire" e só então conheceu U2. Teve traduzido o nome da música naquele dia que era um sábado e havia desejo de que aquela sua fonte de conhecimento nunca secasse. Desde muito cedo tinha medo de perder as coisas. Isso piorou depois de uma noite em que sonhou que o irmão tinha morrido. Horrível! Acordou chorando, procurando pelo irmão... um desespero! Não conseguiu desgrudar do irmão por mais de uma semana. Depois disso, de tão real que foi o sonho, tinha rompantes de saudade de algumas pessoas, que na verdade era medo de perdê-las. Então tudo se tornava motivo para tê-las. Viveu muito tempo invadindo casa e vida de ditos "seus". Entrava na casa da avó quase todo dia se oferecendo para ir no João Angelino "trocar milho" (levava o milho, passava no moinho e trazia fubá). Pelo excesso a avó o reprimia: "Tá doido minino! Já tem fubá que chega!". 

Então, de vez em quando no meio da tarde, inventava uma desculpa para ir à escola espiar se estava tudo bem. Passava na quadra, olhava de longe, se certificava daquela felicidade alta, irradiante... gritava um "ei", fazia um aceno e ia embora. Outras vezes, a certificação de tudo bem vinha alí, do esparramo no sofá assistindo MTV, com cara plácida e cicatriz no rosto. Ensinara também a pronúncia, que não era TV, mas "tiví". 
E seguia por muito tempo, cuidando da felicidade daquelas pessoas, para que estivessem bem, vivas, e dele. Funcionou por muito tempo mas não completamente porque depois algumas o deixaram, como manda a vida.

E de tempo em tempo, descia a rua e ia lá se embebedar, não ainda de golo, mas de alguma coisa que sempre tinha para aprender sobre legião urbana, pronúncia, lugares, roupas, mulheres, sobre a vida, sobre como enxergar o mundo. Viu pela primeira vez na vida, um roupão. Em que mundo vivia? E ele que achava que seu mundo fosse pequeno, se encantava com o universo de alguém no mínimo formidável e usando disso, ia tratando de expandir seu próprio mundo.

Depois somou-se duas das suas grandes ousadias: Também se embebedava agora de golo. Aprendera a tomar whisky, e pelo que parece, o mestre nunca mais esquecera. Dois dedinhos roubados do do pai na estante. O rosto queimava, o olho lacrimejava, e ria-se. De quê? Talvez do que seria a antecipação da felicidade que um dia sentiria relembrando aquele primeiro brinde. Sim, porque depois o riso talvez viesse com lágrima de saudade e nostalgia do peso dos anos. Será que já soubesse?


Conheceu Eros Ramazzotti e ouviu muito Zé Ramalho. Conheceu de conquista, aprendeu sobre mulheres, algo de pai e mãe, de mundo e muito, muito de amigo e cumplicidade. 

Já lhe emprestara a jaqueta Laivo para impressionar as garotas. 

Um dia houve registro, num papel daqueles de embrulhar remédio na farmácia, de algumas inconformidades. Alí talvez pela primeira vez, ficou registrado um olhar sobre o mundo e alguns lapsos sentimentais. E isso passou para frente, contagiou pessoas. Ainda hoje tá aí com a demanda de passar para o papel, de embrulho ou não, alguns dos teoremas que na prática ele aplica bem. É só não lhe pedir que sistematize as coisas no papel. Reluta em escrever. Se esconde em desculpas esfarrapadas. Mas sabe que ele escreve porque se lembra bem do papel de embrulho. A escrita era de caneta vermelha. 

E foi assim que aprendeu sobre como encarar a vida. Hoje não aprende mais pronúncia mas muito sobre generosidades e cumprimento de promessa, já que os tempos são outros mas a cumplicidade, ah, essa é a mesma. Ou maior. E será que vai perder como já perdeu outras pessoas? Vai sim, um dia. Mas enquanto isso, liga e chama para uma pelada de veteranos, para enganar o tempo. Vai que ele se engana mesmo e dá mais tempo?! E uma coisa não mudou: continua indo, agora no Santa Teresa, tocando o interfone, para se embebedar. Ambiguamente. A fonte não secou, como um dia ele tinha pedido a Deus. 

PS: o texto é um obrigado.  











Um comentário:

João Francisco Neto disse...

Nélio, você escreve demais!!!

Um texto lindo.