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segunda-feira, 3 de junho de 2013

Sê inteiro ou qualquer passagem de Clarice


Felicidade causa inveja. A cumplicidade delas também, a qualquer ser normal que talvez devesse ter ganhado o último beijo ainda no berço. 

Mas quanto carinho! Onde já se viu, pessoas se beijando no rosto, irmãs se guiando de mãos dadas... Como não estranhar? 

Ninguém trocava carinhos e gentilezas assim por alí... Teriam aprendido isso em casa? Aquela anomalia causava desconforto ocular na sociedade. Há quem nunca tivesse visto coisa igual.

E assim viviam na quase clandestinidade, lanchando na entrada, à esquerda de quem entra, sentadas no degrau embaixo do padrão, do lado da Telemig. O cheiro de urina incomodava mas não havia outro lugar que permitisse mais privacidade. 

Além da mais velha guiar a irmãzinha pela mão, também partia o lanche e dividiam o café com leite. Além de carinhos e cumplicidade, ainda tinham lancheiras, cada uma a sua. Quanta audácia! Ninguém tinha lancheira. Elas de fato não poderiam circular entre nós mortais assim livremente, sem serem notadas e vistas como aberrações. Pareciam canguru e cria. E nós, sem sabermos o que era inveja, invejávamos. 

Naquela época eu não tinha irmão e o máximo de sentimento parecido que experimentara de perto, era meu melhor amigo de sempre que tinha um apelido carinhoso da irmã. Mas daí a circularem de mãos dadas pelas ruas, jamais o fariam.

A muito tempo não vejo a irmã. Sei que se casou e teve filho. Imagino se tenha se afastado um pouco da irmã, ou se a recebe em casa com mesa farta e beijo carinhoso no rosto. Tenho medo de terem se curado da doença. Qual outro nome daria àquela felicidade irritante, clandestina, tal qual a de Clarice? 

Da mais nova, soube um dia de uma versão que nunca saberei se se procede, que tinha crescido, e isso sim, cresceu, já que temos praticamente a mesma idade, que sofreu de amores bem errôneos, daqueles quase coitados, tipo "A hora da estrela". Foi uma Macabéia, essa é a verdade. 

Era modesta e não sabia se exibir. Acho que se trancava um pouco em seu mundo para não se expor a provas que não fossem de matemática ou português, porque dessas dava conta e sempre tirava 10. No mais, nem para Educação Física dava jeito. Era muito magra e frágil como louça. Para os poetas, uma boneca de porcelana.  

Quando tentou ostentar uma lapiseira que vinha com uma borrachinha com aroma, cafungou a borrachinha que entrou nariz a dentro. Um desespero! A escola em pavorosa e ela aos prantos. A irmã ouviu o choro a quilômetros, da sala da quarta série no final do corredor e chegou correndo para acudir, como sempre fazia. 

Noutro momento de poucos em que se juntou ao povo da rua, (não era dada a rua, mas ao contrário, gostava de casa, onde tinha livros e uma TV), se acidentou. Empurrando um carrinho estranho com nome terminado em "bug", prendeu os dedos na traseira da engenhoca e foi arrastada rua à fora. Não vi o episódio mas soube. Depois não pudemos vê-lá porque em virtude do machucado, ficava coberta apenas por um lençol. Só as meninas podiam vê-la. Mas chegávamos na porta e víamos seu rosto, envergonhado. Demorou para se recuperar.


Depois não soube quais romances tristes teria protagonizado, em versões adaptadas. Sumiu! Conheceu um moço, disso sei, que pelo semblante do rosto parecia ser bom. Ela merecia um anjo e pela fé que sempre teve, somada à fé da mãe e da avó, não permitia Deus que lhe fosse dado homem que não fosse um anjo. 

Outro dia a vi numa foto. Parece que, como toda boa história, a dela teve uma passagem surpreendente, reescrita. Na foto ela tinha a mesma pinta no rosto mas não tinha mais o mesmo medo no olhar. Parece que o anjo, os tais passos que não conheço e os medos que enfrentou, fez dela uma senhora de si. Por isso acho que todo mundo merece um anjo, um passo e uma história para mudar o rumo da vida.

O tempo passou e ela deve estar lá escrevendo mais capítulos e mais histórias com o anjo. Um dia a mãe me falou de conquistas dos dois. Que Deus os abençoe, e à mãe e à irmã com sobrinho. Se não são mais como naquela época, não quero saber. Quando se cresce, a felicidade não precisa ser mais clandestina, mas pode ser o que se quiser que seja. 

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