era um mundo pequeno (o meu) e que aos poucos ia deixando de bastar. a mesmice me tocava a ferida da curiosidade. queria sim, saber o que havia além da placa de "volte sempre" na saída da rua são joão.
as notícias vinham embrulhando latas de óleo, rapadura, ovos. jornal não era jornal, era só embrulho. embrulhos vencidos, datados de mais de um ano atrás. nas fotos em preto e branco (desbotadas) não se reconhecia pessoa alguma. talvez fosse um galã da novela.
falando em novela, nada parecia mais interessante. só um canal era transmitido e com um pouco de sorte a transmissão chegava em 4 ou 5 dias da semana (em 7), sem sair do ar.
a televisão mais próxima era na nora ney. preto e branco, mas com tela colorida, de arco-íris, com sete listras de cores diferentes.
a falta de transmissão regular aguçava a criatividade do povo. assistia-se a um capítulo, a transmissão saia do ar e o telespectador criava o próximo na imaginação, de modo que este se encaixava no próximo capítulo, que saia do ar, daí se criava outro, a transmissão saia do ar, se criava outro, e outro.
rádio não tinha problema de transmissão. pelo contrário, meu pai sintoniza até rádio do estrangeiro. falavam uma língua enrolada que não se entendia uma só palavra, mas acho que pro meu pai devia ter algum sentido. coisa de louco. gente da roça é povo meio louco. muito sozinho e pouco louco.
na rádio nacional da amazônia, depois de "uma hora com o rei" (roberto), ouvíamos as novelas da artemísia azevedo. aos sábados repetia todos os capítulos da semana. à tarde, a casa já arrumada, o porco e as galinhas tratados, tinha-se uma folga. as costuras pra dar conta poderiam ser trabalhadas ao som de "paixão proibida". minha mãe ouvia as vozes no rádio que ficava em cima do guarda-louças e projetava as cenas na parede branca, na frente da máquina de costura, como me contou um dia.
o som ziguezagueante da máquina de costura parecia som de motor de máquina de fazer novela.
(máquina de fazer novela tem som?)
"o certo é que é preciso colocar feijão pra cozinhar. a calça de tergal que foi do seu antônio tem que ser ajustada pro seu irmão" (ele ia carregar o estandarte da festa de são josé daquele ano).
a calça com cheiro de sabão de barro esperava sobre a máquina de costura. separando feijão, sentada no aterro do fogão, vez ou outra caia uma lágrima.
-tá chorando mãe?
ela dava desculpa da fumaça, atiçava as brasas, o fogo reanimava, ela disfarçava. eu não via motivos pra estar triste.
-choveu ontem. meu avô já tava desesperado por que passou do dia de chover, mas choveu.
meu avô não gostava de apelo. dizia que deus sabe a hora certa de tudo, até de mandar chuva, mas minha avó, ao vê-lo por mais de uma semana comendo de cabeça baixa, como que caçando formiga miudinha no chão, sem pronunciar uma só palavra, viu que não podia mais ficar de braços cruzados. decidiu interceder a nossa senhora, em segredo.
acordou cedo, foi na bica d'água e lavou o terço. lavar terço na bica rezando uma "ave maria" traz chuva e seca lágrimas.
meu avô continuou deixando as providências a cargo de deus e agradeceu a ele pela chuva. minha avó fazia do meu avô um homem de fé.
"ele sabe a hora de tudo, meu filho".
4 comentários:
Olá meu amigo!
Não conseguia mais comentar aqui!
Que belo texto.. imaginei Jacuri daqui. E a simplicidade e crenças de um povo tão humilde. Deu-me vontade de estar lá... Quem sabe num futuro próximo!
Grande abraço!
ah Nelio...que texto lindo!
Que vontade de sentir isso tudo de perto, essa leveza, essa simplicidade tão bonita que você descreve tão bem!
E essa foto? Dá pra sentir o cheiro da janta e o calor do fogo daqui!
Gostei...muito!
Consegue transpor um universo tão distante do urbano em palavras numa organização primorosa.
Não me espanto com sua capacidade de intermediar,com tanta propriedade,um mundo simples com uma descrição e uma correlação tão limpida, liquida e poetica.
O belo é poder falar do simples com sofisticação, só por garantia em nos mostrar algo que não conhecemos mas que quando você escreve me faz visualizar como era aquele tempo em Jacuri.
É bom te ler.
Beijo!
Tambem vivi esse tempo,que saudade!!ouvindo as novelas da Artemisa e da tia Leninha...a radio nacional da amazônia foi uma referencia muito grande na minha vida, eu tinha apenas 11 anos.Neste momento pra matar um pouco a saudade estou ouvindo Verônica Sabino "Demais", que foi um dos temas de um quadro do programa chamado "a música da minha vida".lembra? abraços!
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