sábado. não me senti bem e saí mais cedo do trabalho. senti uma dor navalhando minha barriga, estômago, fígado, sei lá.
o dia já não havia começado muito bem. na verdade não havia nada de errado com o dia mas talvez comigo mesmo, que enxergava um quê de cinzento, sombrio.
talvez o probelama estivesse em meus olhos. não, talvez no coração mesmo. talvez fosse loucura. é isso, era loucura.
então, com meus devaneios somatizados na dor de estômago (barriga, fígado, sei lá), subi a rio branco à pé. gosto de andar pelo centro da cidade aos sábados. sempre consigo reparar numa série de coisas que passam despercebidas por meus olhos, mesmo fazendo os mesmos caminhos todos os dias.
à medida que andava, a dor aumentava. passando em frente ao teatro glauce rocha, parei pra ver o que estava em cartaz. por mais que estivesse me sentindo mal, jamais resistiria a passar na porta de um teatro sem me aproximar pra me energizar um pouco. tinha uma montagem de formatura da cal (casa de artes de laranjeiras). me entreti com o cartaz quando, de repente ouvi um tiro.
talvez não fosse um tiro. alguém do meu lado, me fitou perguntando: -é tiro? eu não respondi verbalmente mas fiz cara de que não sabia. meu lado racional concluiu que não devesse ser tiro por que ninguém havia corrido. olhei pra trás (estava de costas pra rua) e ninguém se mexera. a órbita do universo continuava normal, a não ser só um vira-lata que passou correndo assustado, quase me derrubando. acabei de admirar o cartaz do espetáculo e segui meu caminho, que eu nem me lembrava mais qual era.
alguma coisa mudara depois do tiro (teria mesmo sido um tiro?). senti um nó na garganta e quando arrisquei mudar o primeiro passo, descobri que estava tonto. as pernas pararam de me obedecer. olhei à minha volta e tudo continuava exatamente igual, mas então por que eu me sentia assim... morto?
algumas vezes eu imaginei que a morte fosse assim, desse jeito, você morre e leva um tempo até descobrir que morreu.
voltei e procurei pelo meu corpo estirado no chão, cheio de sangue e pessoas em volta, mas não achei nada. acho que a quem morre, deveria ser dado ao menos o direito de velar o próprio corpo. me veio na cabeça correr logo para um hospital por que não estando morto, acabaria morrendo. suava frio e ao mesmo tempo que queimava de febre.
tive medo de atravessar a rio branco. os carros cruzando na minha frente formavam um fio de luz incandescente, cegante. mirei o municipal e fui. me sentei na escadaria e esperei ter condições ao menos de andar. havia perdido a noção de realidade e não sei precisar por quanto tempo exatamente fiquei alí, parado.
(banca da cinelândia - fonte: http://theurbanearth.wordpress.com)
cambaleante, caminhei até uma banca de jornais e tomei uma água. aos poucos retomava minha consciência e ia me lembrando do que se passara. de brinde, a realidade. tive medo de ser assaltado, como se a cinelândia inteira me olhasse com olhos devoradores, como uma alcatéia de lobos cercando um pobre cordeiro. corri os olhos por alguns livros e avistei nietzsche. bom encontrá-lo alí, principalmente num dia em que tive a sinistra sensação de estar morto. não poderia ter aparecido em melhor hora.
tendo a nietzsche por companhia, segui rumo ao hospital. aumentava os passos à medida que a dor aumentava, ou a dor aumentava à medida que eu aumentava os passos, não sei bem. andei um bocado sem me dar conta da distância. segundo meu prontuário, às 14:37 dei entrada no hospital espanhol.
"aguarde!" só se ouve isso num hospital. aguardei muito, fiz alguns exames e... descobri que estava com pedra nos rins. entre outras coisas, descobri também que o medo da morte pode ser bem pior do que a própria morte em si.
metade da minha vida passou pela minha cabeça como um filme, em 30 minutos, na sala de raio x. uma sala gelada, escura, sombria, cheia de portas, armários. uma enfermeira gentilmente me encaminhou até ela, me orientou quanto aos procedimentos para o exame e se foi. parece que me esqueceram alí. me senti a pessoa mais sozinha do mundo, deitado numa chapa fria, de cueca, coberto apenas por um lençol branco, esperando por uma médica que nunca chegava. voltei a pensar na morte. sensção de miudeza.
saí do hospital às 23:40. liguei avisando que estava bem mas não quis dar endereço de onde estava e nem queria que ninguém me buscasse. precisava passar por aquilo tudo sozinho, por que, se era uma prévia do que poderá me acontecer de novo um dia (e pode ser que aconteça de forma bem mais séria e não apenas com umas pedrinhas nos rins), seria preciso que eu soubesse me virar, por que na morte, eu imagino que estejamos assim, sozinhos.
tomei um táxi saindo do hall do hospital e fui pra casa, eu, meus exames, uma garrafinha d'água e uma sacolinha de remédios. me livrei das pedras uns 5 dias depois.
não morri e perdi um pouco o medo da morte.
2 comentários:
desolador esse texto, apesar de concordar com grande parte do que você diz. Acgo que sentiria falta da minha casa da minha mãe. Nessas horas que percebemos muitas coisas, principalmente que não somos tão forte e que os nossos braços são curtos demais pra abraças o mundo.
Morre-se todos os dias um pouco. E nossa partes morrem e resnascem muitas vezes sem que percebemos...
Da história,o mais interessante é descobrir quantas vidas se tem após a primeira, para saber o quanto resistimos morrer mais outra vez.
Beijo
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