Um dia como outro qualquer, salvo por um pequeno detalhe. Às vezes detalhes fazem toda uma diferença.
Eu como sempre, atrasado. Na correria para me livrar logo da camisa e entrar no banho, um movimento brusco e estúpido arremessou meu relógio dentro do vaso sanitário.
Como se não bastasse tê-lo molhado, a pulseira ainda por cima se dividiu em vários pedaços. Não era à prova d'água, muito menos de água de vaso. Me custara nove e noventa na porta da Galeria do Ouvidor e foi comprado às pressas já que meu último modelo me deixara na mão. Definitivamente o prejuízo não era tão significativo assim, salvo pelo fato de que nunca consegui me imaginar sem um relógio no pulso e isso me traria talvez prejuízos psicológicos.
Não sei bem a que horas saí de casa mas sei que nesse tempo que passei sem orientação horária correspondia pra mim a, no máximo uma hora. Não foi isso. Cheguei super atrasado no trabalho. Não sei exatamente por quanto tempo me atrasei e isso me deseperou um pouco.
E o celular? -O meu só me serve para a razão de sê-lo: telefone. É usado e foi ganhado do meu amigo Pedro. Tem um pequeno problema:o visor nunca funciona. Levei-o à assistência técnica e o cara me disse que o problema era no display. A troca do tal display ficava em setenta reais. Sem chance. Com esse valor dá para comprar um celular novo, desses que falam, claro, por que os que tocam musiquinha, fotografam, filmam, passam e-mail, servem de controle de televisão, GPS e sei lá mais oquê , esses devem custar o preço de um carro popular, imagino eu. Toda essa balela para dizer que meu celular não pode me fornecer as horas.
Deixei para almoçar quando a fome apertasse. Não fiz questão de olhar as horas no computador. Almocei tarde. Ao fim do dia, vi que a noite caia e não tive pressa de ir para casa. Não sei a que horas saí do escritório. Gostei da brincadeira de me perder no tempo mas confesso que achei um pouco desgatante.
Às oito, nove ou dez da noite, não sei bem, subia a rua Carangola, julgando ser tarde pelo roncar do meu estômago, quando meu celular que só serve para me comunicar com pessoas, tocou. Meu amigo Matheus, depois que eu disse onde eu estava, pediu que eu atravessasse para a rua Leopoldina e esperasse por ele no cruzamento da Congonhas. Assim o fiz e esperei por ele uns quinze minutos, ou seria uma hora?
Entrei no carro. Ele não disse onde iríamos. Imaginei uma boite ou barzinho, por que poderia tanto ser oito da noite como poderia já passar das onze. Partimos para a Pampulha. O destino era um Boulevard de flamboyants, rua parisiensemente calçada e pinhada de carros nacionais e importados. A suntuosa mansão merecia o uso de termos a la française. Alí se reunem religiosamente às terças, um grupo de amigos para um futebol descontraído e para saborear, ao final da pelada, um prato sugestivamnete preparado por um qualificadíssimo cozinheiro especialista em pratos servidos exclusivamente em reunião de amigos como feijoada, caldo de mandioca, de mocotó, feijão tropeiro, vaca-atolada, entre outros e na ocasião o menu era galinhada.
Entre os presentes, jovens médicos, o anfitrião empresário e sua esposa, o dono de um tradicional e sobrevivente hotel no centro da cidade, o gerente da conta bancária do anfitrião, alguns funcionário-amigo-íntimo, sobrinhos, amigo de um dos sobrinhos, eu (amigo do cunhado do primo da anfitriã), e, para me consolar da minha filosofal pergunta:-O que eu estou fazendo aqui?, caseiros das mansões vizinhas.
Sofri até conseguir levantar a cabeça pela primeira vez. Até então meus olhos só conheciam o chão, um belo piso por sinal. Minha deixa foi quando o anfitrião se serviu de uma pinga-da-roça, se enaltecendo de orgulho ao garantir que ele mesmo havia desbravado pessoalmente, perdidos sertões longíquos no interior de Minas para chegar àquela iguaria, ato heróico que só foi possível estando à bordo de sua Land Rover. Meu amigo, após o discurso do anfitrião, na tentativa de me lançar como pessoa amiga e já quase de casa, solta:-Meu amigo é grande apreciador de pinga boa. Inevitalvemente, sou servido de uma dose da benfazeja bebida. Depois do trago, cerveja para tira-gosto, já que o prato de tira-gosto oficial da mesa era sambiquira ou sobre ou curanxim, como preferirem chamar, mas esse estava do outro lado da mesa e minha postura bobo/educado/acanhado não me permitia levantar e rodar o carrossel da mesa e fazer o prato chegar até mim.
A essa altura do campeonato, parecia que já estava alí sentado a pelo menos uns dois dias. Foi mais ou menos apartir de então que me dei conta da presença de uma ilustre e humilde personalidade no mundo do futebol. A maior parte do tempo o assunto na mesa havia sido futebol. Interessante que era uma forma diferente de falar de futebol. O que se vê por aí são sempre discursões sobre os antagônicos Atlético e Cruzeiro mas na roda ouvi relatos, críticas de contratação e venda, equipe técnica e bastidores de times que nem ouço falar, se é que um dia ouvi. Logo me situei e descobri que estava entre entendedores de futebol e não entre torcedores fanáticos obsessivos e chatos. Botafoguenses, flamenguistas, Vascaínos e em minoria, atleticanos e um cruzeirense, dois comigo. Não me espanto mais com mineiros de vivência e nascença aqui em Minas torcendo para times cariocas. Quando estive em Cataguases não vi sequer uma camisa do Galo ou Cruzeiro, em compensação, tricolores, vascaínos, botafoguenses coloriam os bares, sem considerar rubro-negro que é igual a gente feia, onde você vai, tem.
Se me perder no tempo hoje era minha sina, perdido fiquei mesmo quando descobri que o cara boa praça que me chamava a todo momento de irmão do Danilinho era Sérgio Araújo, ex-atacante do Atlético na década de 80. Ouvi estórias de que nunca me esquecerei.
Ex-ponta do Atlético, onde marcou seu nome na história do clube na década de 80, Sérgio Araújo, que já defendeu outros times importantes do futebol brasileiro, como Flamengo, Vasco, Fluminense e Grêmio, assumiu este ano o comando da equipe de juniores do Villa Nova. Aos 43 anos, Sérgio Araújo, que encerrou sua carreira como jogador, em 2000, no Serra, do Espírito Santo, decidiu tentar a sorte como técnico, há três anos. Ele viajou a Portugal, onde em 1994 atuou pelo Vitória de Setúbal, e fez um curso de treinador. Ao retornar ao Brasil, o ex-ponta direita começou na nova profissão. Ele ficou dois anos à frente do time profissional do Operário, do Mato Grosso. A boa passagem pela equipe de lá motivou o convite para assumir o júnior do Villa Nova, no ano em que o clube de Nova Lima comemora o seu centenário.
Ségio viveu o auge de sua carreira na década de 80 no Atlético-MG, e hoje espera que o Vila conquiste a Taça Belo Horizonte da categoria, disputada no meio do ano. Ele que como jogador aliava boa técnica com muita velocidade, além de demonstrar garra e amor pela camisa dos clubes que defendeu, revelou que adota o mesmo estilo dos gramados fora das quatro linhas. Sérgio salienta que para fazer seu trabalho hoje se inspira em alguns dos grandes treinadores da história do futebol brasileiro, com os quais trabalhou como jogador. Telê Santana, treinador do Atlético-MG, São Paulo e Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1982 e 86, é apontado por ele como o maior de todos mas acumula experiências de trabalhos com outros grandes treinadores como Zagallo, Procópio Cardoso, Abel Braga, Parreira. Sérgio foi ídolo da torcida do Atlético-MG na década de 80 onde atuou por nove anos e diz sentir um pouco de mágoa por nunca ter tido oportunidade de treinar uma equipe da categoria de base da equipe mineira. Entre os times que Araújo defendeu estão Atlético-MG (80-88), Flamengo (88-89) , Fluminense (89), Vasco da Gama (90), Grêmio (91), Guarani (92) , Ponte Preta (93) , Vitória de Setúbal (94), XV de Piracicaba-SP (95), América de São José do Rio Preto-SP (96-97) , Inter de Limeira-SP (98), Villa Nova-MG (99), Serra-ES (2000). Coleciona os títulos do Campeonato Mineiro (80,81,82,83,85,86,88, Atlético-MG), Taça Rio (90, Vasco), Gaúcho (91, Grêmio), Pré-Olímpico (87, Seleção Brasileira).
Bom, não era meu objetivo em um dia sem relógio, voltar para casa tão tarde, fazer uma entrevista como essa, ouvir pessoas tão diferentes, conhecer pessoas tão quanto. Cheguei à conlusão que meu dia rendeu muito mais do que quando sou escravo das horas, dos minutos, de cada segundo. Fica aqui uma homenagem aos "Heróis de Verdade" que não têm tempo certo, são eternos como Sérgio Araújo e parabéns aos amigos que se reunem às terças numa mansão da Pampulha. Bom saber que numa época em que os laços de convivência andam cada vez menos estreitos pela falta de tempo e até de amor mesmo, ainda encontramos amigos que se prestam a dedicar duas horinhas da semana à um bom futebolzinho acompanhado de jantar fraternal, tendo filosofias futebolísticas como sobremesa.
Bon Appétit!
Nelio Souto
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